
Na edição do dia 31 de março
de 1965, o jornal O Globo comemoraria o primeiro aniversário da
“revolução gloriosa”. No editorial “É preciso não esquecer”, o jornal carioca
convocava seus leitores a celebrar o “primeiro aniversário de um acontecimento
tão importante como foi a Revolução Democrática”. O editorial louvava a atuação
da aliança golpista e pedia ao povo que tolerasse os sacrifícios que a
“revolução” pedia. De acordo com o grupo, em mais um malabarismo retórico, que
vem caracterizando a atuação de sua linha editorial, era preciso não esquecer
que a “revolução” era necessária. Para os editores do periódico,
contraditoriamente, para salvar a democracia era preciso acabar com ela. “A
Revolução é irreversível e consolidará a Democracia no Brasil”, lema que
estamparia os documentos oficiais produzidos pela ditadura que apenas se
iniciava.
O argumento do jornal, que reside
no princípio da inevitabilidade de certos processos históricos, passaria a ser
o mote dos apoiadores do golpe de 1964 e da ditadura militar que seria
instaurada em seguida. A intervenção arbitrária teria sido feita para “salvar o
Brasil”. A fragilidade da premissa encobria a trama histórica, que havia nos
conduzido ao projeto autoritário de 1964. A justificativa buscava esconder os
interesses que haviam mobilizado a aliança que levaria os generais ao comando
do país. Nas décadas seguintes, as narrativas oficiais celebrariam os “feitos
da revolução gloriosa”, omitindo do público as arbitrariedades, a violência, as
práticas de corrupção, os assassinatos políticos, enfim, o embrutecimento de nossa
vida coletiva com o argumento de que: era necessário.
“A HISTÓRIA É O TEMPO ENCADEADO
EM EXPLICAÇÕES SATISFATÓRIAS E PROVISÓRIAS”.
Passadas mais de cinco décadas
desde o remoto abril de 1964, é preciso não esquecer disso. Ao historiador
compete a tarefa de lembrar à sociedade aquilo que ela deseja esquecer. Retirar
o véu que insiste em encobrir o passado que se busca olvidar. Não é uma função
simples. Em sociedades marcadas por experiências autoritárias recentes torna-se
tarefa das mais difíceis; e, ao mesmo tempo, das mais necessárias. Países que
passaram por experiências violentas de alguma natureza – ditaduras, regimes
autoritários, guerras, conflitos internos e outras – recorrem aos estudiosos
das relações humanas, em busca de explicações satisfatórias para os eventos que
aconteceram no passado. Aos estudiosos das ações humanas no decorrer do tempo,
competiria a tarefa de oferecer sentido ao passado, sem com isso imbuir-se do
papel de juiz da História.
Esta tarefa, ou seja, a produção
de conhecimento historiográfico sobre eventos próximos do nosso entorno
temporal e/ou “afetivo” representa desafio extra aos historiadores que se
debruçam sobre o passado recente. Em parte, isso se dá porque os vínculos que
reúnem a história do passado recente com a cena política parecem bloquear a
possibilidade de reflexão serena, equilibrada e embasada em documentação. A
tarefa, no entanto, é fundamental; e, por meio de um amplo aparato teórico e
metodológico, é possível alcançar resultados satisfatórios (ainda que provisórios).
Entre nós, brasileiros, esses
fenômenos permanecem um traço marcante em nossa trajetória. Em primeiro lugar,
porque o golpe de 1° de abril de 1964 e a ditadura subsequente, que se
instalaria pelos próximos 21 anos, representam eventos fundamentais para a
compreensão do país que emerge neste princípio de século XXI. Ao mesmo tempo,
porque entre nós, em nossa condição de comunidade política, há um conjunto de
forças que insistem no “esquecimento” de muitas das dimensões de nosso passado
autoritário. Pode-se dizer até mais: que insistem no uso político de
determinadas memórias, com o intuito de “revisar” a história do período,
ressignificando-a em benefício de projetos autoritários no tempo presente.
Ao mesmo tempo, porque a
sociedade brasileira que emerge neste princípio de século mantém o
autoritarismo, em suas inúmeras manifestações, como traço definidor de nossas
relações políticas e sociais. As “soluções” arbitrárias têm representado no
imaginário popular um dos recursos mais sedutores para o enfrentamento dos
conflitos sociais, econômicos e políticos em nossa história recente. E, isso
acontece, em boa medida, porque o golpe de 1964 e a ditadura militar
representaram a exacerbação dos traços autoritários de nossa cultura.
Os anos que separam a chegada dos
militares ao comando do Palácio do Planalto, com o general Castelo Branco em
abril de 1964 e, a melancólica retirada em meados da década de 1980, com João
Figueiredo, assinalam um período extremamente complexo. Foram décadas de
transformação interna acelerada, de crescimento desordenado, de concentração de
renda e de poder decisório; foram anos de “favelização” dos centros urbanos, de
precarização da vida, de explosão da violência. Anos de perseguições e
assassinatos políticos, de tortura oficializada, de repressão, de medo. Foram
os anos que reforçaram traços de uma sociedade marcada pela extrema violência,
pelos altos índices de criminalidade e pela brutal desigualdade social.
Foram ao mesmo tempo, anos
marcados pela “dimensão revolucionária”, que a possibilidade de mudança
prometia. Foram os anos da expansão das atividades econômicas, da multiplicação
da indústria, da “revolução sexual”, da revolução latino-americana, dos
barbudos da Ilha. Anos de (alguma) emancipação feminina, de novos padrões
culturais; foram os anos de surgimento do rock (e do rock nacional), da música
popular brasileira de João Gilberto, de Tom Jobim, de Vinícius de Moraes, de
Cartola; de Gal Costa, de Elis, Malu mulher ainda sem medo e de Ney Matogrosso,
deslumbrantemente desafiando a cafonice e o conservadorismo. Vocês se lembram
do Dzi Croquettes? Anos das discotecas, dos festivais de música, da descoberta
dos corpos, do amor livre, do coração transplantado, pulsando forte e apontando
um futuro promissor.
E isso, sem falarmos nas
transformações no resto do mundo.
Hoje, 55 anos depois do golpe,
voltamos a falar sobre o movimento civil-militar que, no dia 1° de abril de
1964, destituiu o governo do presidente João Goulart e possibilitou o início da
ditadura. Por quê? Parece-nos que a resposta para essa questão, em larga
medida, está aqui entre nós: porque o golpe de 1964 é o acontecimento histórico
decisivo para a compreensão da sociedade que somos hoje; é o evento central
para compreendermos a persistência do autoritarismo entre nós e, ao mesmo
tempo, os mecanismos violentos e discricionários que sustentam a existência de
uma sociedade violenta, reacionária, desigual e cruel.
Assim, não podemos esquecer que
nós seguimos o esforço de compreensão desses anos turbulentos, porque o
sofrimento causado pelo terrorismo de Estado acompanha a vida de milhares de
brasileiros que sofreram (ainda sofrem) diretamente com a violência da ditadura.
Como lembrou o historiador Marcos Napolitano, em entrevista que nos concedeu: a
montagem de um Estado terrorista é uma opção política, não uma contingência
histórica.
Fonte: www.historiadaditadura.com.br
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