Desde que ingressou no Supremo Tribunal Federal (STF), em
2006, a ministra Cármen Lúcia Antunes Rocha, de 63 anos, sempre agiu como
típica mineira: discreta, tranquila, evitando polêmicas e confrontos com os
colegas. Mas essa postura mudou após assumir a presidência da Corte, em
setembro de 2016. A magistrada precisou agir com firmeza para enfrentar crises
políticas, julgamentos polêmicos e a guerra de vaidades que permeia a Suprema
Corte. Sempre com elegância, desenvoltura e sabedoria.
A seis meses de encerrar seu mandato a frente do STF, ela deu
o voto de desempate e fez com que a corte rejeitasse o pedido de habeas corpus
do ex-presidente Lula para que ele permanecesse em liberdade até o fim de
todos os recursos cabíveis da condenação imposta a ele pelo Tribunal Regional
Federal da 4ª Região (TRF-4) no processo do tríplex do Guarujá (SP).
Na prática, o STF deixou o petista - líder nas pesquisas de intenção
de voto ao Palácio do Planalto - mais próximo de ser preso em breve.
Conheça a seguir um pouco mais da trajetória da juíza mais
poderosa do Brasil na atualidade.
Da advocacia ao STF
Natural de Montes Claros, Carmen Lúcia foi advogada,
promotora e ocupava o cargo de procuradora-geral de Minas Gerais quando foi
indicada pelo então presidente Lula ao STF. Na sabatina na Comissão de
Constituição e Justiça (CCJ) do Senado, foi aprovada por unanimidade. Na
votação secreta em plenário, dos 56 presentes, apenas um ficou contra a
indicação – o melhor desempenho entre todos os 13 ministros que assumiram até
então, desde 2003.
A mineira sempre integrou a ala mais “combativa” do STF, que
pende para a aplicação de penas mais rígidas (inclusive para políticos) e
respostas mais rápidas para as demandas da sociedade – prova disso é a postura
intransigente contrária dela a colocar em pauta novamente a questão da execução
da pena após condenação em segunda instância judicial. Um assunto que nunca foi
pacificado, mas que já foi julgado três vezes: em 2009 e em 2016 (duas vezes).
Carmen Lúcia presidiu a histórica sessão de 5 de outubro de
2016, quando o STF se debruçou sobre o tema pela última vez e autorizou, por
seis votos a cinco, a prisão após decisão condenatória de segunda instância.
Como presidente da Corte, ela proferiu o voto de minerva que desempatou o
julgamento e consolidou a nova jurisprudência.
O resultado, aliás, teve um gosto especial para Carmen Lúcia.
Em 2009, quando o órgão havia declarado que a sentença só poderia ser executada
após trânsito em julgado, ela foi voto vencido, junto com outros três. Sete
anos depois, com uma nova composição da Corte e a mudança de voto de Gilmar
Mendes, ficou do lado vencedor.
Agora sofre pressões internas e externas para pautar
novamente o assunto, que pode beneficiar o ex-presidente Lula – o petista já
foi condenado em duas instâncias no caso do tríplex do Guarujá e pode ser preso
assim que os embargos de declaração que protocolou no Tribunal Regional Federal
da 4ª Região sejam apreciados. Uma corrente dentro do próprio STF, que defende que
a pena só pode ser executada após o trânsito em julgado da ação, ou seja, após
o julgamento de recursos nos tribunais superiores, tenta forçar Cármen Lúcia a
julgar novamente o tema. Mas ela resiste bravamente – disse recentemente que
modificar essa jurisprudência para beneficiar alguém – no caso Lula – seria
“apequenar” o Supremo.
Artilharia pesada
Mas a artilharia da mineira vai para vários lados. Em junho
de 2015, ganhou respeito entre os defensores da liberdade de expressão, ao
rechaçar a possibilidade de censura prévia a biografias. “Cala a boca já
morreu, quem manda aqui sou eu”, disse ela, ao resumir seu voto como relatora
da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 4.815.
Cármen Lúcia também alveja a própria corporação. Em novembro
de 2015, criticou os “penduricalhos” recebidos por membros do Judiciário e do
Ministério Público. “Indenização é deixar indene, sem dano. Se não houve dano,
não há que se falar em indenização, por óbvio. Aí é português. E, no entanto,
sob o nome de verba indenizatória se paga o que não deve”.
Os benefícios que engordam os salários de magistrados é um
assunto caro a ministra. Tão logo assumiu a presidência do Conselho Nacional de
Justiça, ela elevou o tom das críticas. Ao ponto de determinar, em agosto de
2017, que os tribunais de todo o país tornassem públicos os gastos com
folha de pessoal, de forma a dar transparência a pagamentos que elevam os
salários acima do teto constitucional do serviço público.
O gesto foi mais simbólico do que prático – os juízes
continuam ganhando altas indenizações, pelo mais diversos motivos, burlando a
regra do “abate teto”. Mas a firmeza com que atacou publicamente os
“penduricalhos” foi digno de aplausos.
Um desses benefícios é o auxílio-moradia, cuja
constitucionalidade deve ser julgada na próxima quinta-feira (22) pelo plenário
do STF. Vale lembrar que quem define a pauta de julgamentos é a presidente da
Corte e não é difícil imaginar o voto dela nesse julgamento.
Religiosa, simples, sem luxo
Como mulher solteira e sem família, Cármen Lúcia dedica boa
parte do seu tempo ao trabalho, um comportamento que se reflete em seu peso:
“ninguém pesa 40 quilos impunemente”, afirmou em entrevista ao jornal O Estado
de Minas. Nos momentos de folga gosta de reunir amigos em sua residência, para
jantar. Quando está só, se alimenta pouco, de modo espartano.
O rigor com que trabalha e vive em privado começou a ser
construído na infância, quando estudou em um internato de freiras. É religiosa,
mas votou a favor do aborto de fetos anencéfalos, em 2012. Outro tema
importante para a ministra é o feminismo. Em diversos julgamentos, antes de
presidir o STF, ela discursou a respeito do preconceito contra as mulheres,
inclusive e especialmente no Judiciário.
Pessoas próximas descrevem a ministra como pessoa simples,
que evita luxos. Dirige o carro próprio e usa o carro oficial apenas a
trabalho. Evita confrontos e se considera acessível, apesar de alguns advogados
a considerarem de difícil trato. No seu gabinete no STF já recebeu diversas
vezes o senador Aécio Neves (PSDB), conterrâneo de Minas Gerais chamado por ela
de “Aecinho”. Ela também é alvo de um apelido carinhoso: o colega Gilmar Mendes
costuma chamar a ministra de “Carminha”.
Polêmicas a perseguem
A polêmica acompanha a presidência de Carmém Lúcia não é de
hoje. Foi dela o voto que devolveu o mandato parlamentar a Aécio Neves em
outubro de 2017 – o julgamento terminou com placar de seis a cinco. Naquele
momento, ela precisou agir para evitar o agravamento de uma crise aberta entre
o Judiciário e o Legislativo com a decisão da Primeira Turma do STF que afastou
o senador mineiro e determinou o seu recolhimento noturno. O Senado ameaçava
derrubar a decisão judicial à revelia da Suprema Corte, contestando a medida
adotada por um colegiado em uma votação apertada (três a dois).
Após uma conversa com o presidente da Casa Legislativa,
Eunício Oliveira (PSDB-CE), ficou decidido que o STF colocaria em julgamento
uma ação que estava engavetada e que previa que sanções da Justiça contra
parlamentares devem ser submetidas ao Congresso, que pode manter ou derrubar a
sanção. Foi o que ocorreu no caso Aécio – o Senado lhe devolveu o mandato,
por 44 votos a 26, tão logo o STF julgou constitucional a medida conforme a
costura de bastidores. Com o dedo de “Carminha Minerva”, como foi chamada logo
depois.
Troca de e-mails no mensalão
Um ano após ingressar no STF, a ministra Cármen Lúcia foi
protagonista de um momento de grande constrangimento no tribunal. Em agosto de
2007, quando o STF começava a apreciar a denúncia do Ministério Público Federal
contra os 40 acusados do mensalão, uma conversa dela com o colega Ricardo
Lewandowski dava a entender que o ex-ministro Eros Grau teria feito acordo com
o Planalto para rejeitar a acusação.
A troca de mensagens, via computador, foi flagrada por um
fotógrafo de O Globo, que publicou o conteúdo. Em meio a comentários sobre a
sustentação oral do procurador-geral da República à época, Antônio Fernando
Souza, Cármen escreveu: “O Cupido [em referência ao ministro Eros Grau] acaba
de afirmar aqui do lado que não vai aceitar nada”, em referência à denúncia.
Lewandowski respondeu: “Ah, agora sim. Isso só corrobora que houve uma troca.
Isso quer dizer que o resultado desse julgamento era realmente importante [cai
a conexão]”.
Depois do ocorrido, os ministros do STF fecharam um acordo
para abafar a crise que começava a se instalar. Lewandowski justificou que
quando disse “troca”, quis dizer que Eros Grau estava mudando o voto. Em 2012,
em entrevista à Folha de S. Paulo, disse que conversas do tipo são “normais”, e
defendeu a transparência no tribunal.
No julgamento do mensalão, o voto de Cármen seguiu o da
maioria dos colegas. Das 95 sentenças proferidas, a ministra foi vencida em
apenas 10 ocasiões, quando absolveu os acusados do crime de formação de
quadrilha. Esse foi o mesmo entendimento dos ministros Lewandowski, Rosa Weber
e Dias Toffoli.
Votos contundentes e sem cor partidária
No fim de novembro de 2015, quando a Segunda Turma do STF
referendou a prisão preventiva do senador Delcídio do Amaral, decidida na
véspera pelo ministro Teori Zavascki, o voto mais contundente foi de Cármen
Lúcia – uma marca registrada da ministra em sua trajetória na Corte.
“Na história recente da nossa pátria, houve um momento em que
a maioria de nós, brasileiros, acreditou no mote segundo o qual uma esperança
tinha vencido o medo. Depois, nos deparamos com a Ação Penal 470 [do mensalão]
e descobrimos que o cinismo tinha vencido aquela esperança. Agora parece se
constatar que o escárnio venceu o cinismo”, afirmou, causando a ira de alguns
movimentos de esquerda.
Mais recentemente, em fevereiro de 2017, coube a presidente
homologar as delações premiadas de executivos e ex-executivos da empreiteira
Odebrecht, que implicaram mais de uma centenas de políticos na Operação Lava
Jato, de diversos partidos e correntes políticas. Cármen Lúcia chamou para si a
responsabilidade pelas homologações diante da urgência que se fazia e da
incerteza causada pela trágica morte do ministro Teori Zavascki, falecido na
queda de um avião em Parati (RJ), em janeiro daquele ano. Teori era o relator
da Lava jato na Corte.
Não ao induto natalino de Temer
Em meio às festas de fim de ano, em 2017, a presidente do STF
contrariou mais uma vez forças políticas poderosas ao barrar por liminar o
generoso indulto natalino do presidente Michel Temer (MDB), que ameaçava soltar
condenados por casos de corrupção como os investigados na Lava Jato. “Indulto
não é prêmio ao criminoso nem tolerância ao crime. Nem pode ser ato de
benemerência ou complacência com o delito, mas perdão ao que, tendo-o praticado
e por ele respondido em parte, pode voltar a reconciliar-se com a ordem
jurídica posta”, escreveu a ministra em sua decisão.
Uma decisão pedagógica no ano em que o chefe do Executivo
brasileiro havia sido alvo de duas denúncias criminais no caso JBS e escapado
ileso pelas mãos da Câmara dos Deputados, impedindo a abertura de ação penal no
próprio Supremo.
Fica claro, pois, que a verve de Cármen Lúcia não é
direcionada a um partido específico. Em agosto de 2015, quando a oposição da
presidente Dilma Rousseff tentava insuflar o processo de impeachment, a
ministra disse, em um evento: “É um instituto que está previsto na
Constituição, só que aplica-se em casos de processo de crime de responsabilidade,
e não tem nada disso em andamento”.
Na mesma ocasião, citou uma frase de Benjamin Disraeli,
primeiro-ministro do Reino Unido: os homens de bem precisam ter a ousadia dos
canalhas. Posteriormente, ao jornal Estado de Minas, ela reforçou que as
pessoas precisam reagir para mudar a situação, e não deixar o mal prevalecer.
Esta é Cármen Lúcia, a ministra do Supremo que desafia o status quo de forças
políticas poderosas no Brasil.
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