"O senhor Getúlio
Vargas partiu hoje, às primeiras horas da manhã, de avião, para o norte
do país. O presidente de honra do PTB visitará as capitais dos estados
nortistas, nas quais participará de comícios de propaganda de sua
candidatura à Presidência da República". Foi assim que o jornal Folha da
Manhã, antigo nome da Folha de S.Paulo, anunciou a caravana do então
senador Getúlio Vargas pelo Norte do Brasil no dia 20 de agosto de 1950.
Há
duas semanas, mais de 67 anos depois da caminhada de Getúlio, outro
ex-presidente, o petista Luís Inácio Lula da Silva, iniciou peregrinação
parecida no Nordeste. O objetivo do Lula de agora, é o mesmo do Getúlio
de antes: retornar ao cargo de presidente do país.
Em
julho, o ex-presidente foi condenado a nove anos e seis meses de prisão
por corrupção passiva e lavagem de dinheiro no julgamento em que era
acusado de receber um apartamento tríplex no Guarujá (SP), mais a
reforma do mesmo imóvel, em troca da promoção de interesses da
empreiteira OAS junto à Petrobras. Lula alega inocência e diz que é
perseguido pelo juiz federal Sergio Moro.
O caso do tríplex ainda será julgado em segunda instância. Caso seja condenado, Lula ficará inelegível e pode ser preso.
A
aliados, o petista chegou a mencionar o exemplo de Getúlio. Lula
afirmou ver semelhanças entre as suas condições e as do populista que,
depois de uma temporada na presidência, tentava voltar à cadeira.
Assim
como Lula, Getúlio fez sua própria caravana Brasil afora para tentar
conquistar a simpatia dos eleitores. Essa empreitada era desacreditada
por parcela da sociedade, especialmente por uma parte da elite econômica
e da mídia, que não viam com bons olhos sua campanha - mais uma
semelhança que Lula vê entre ambos. "Diferente do Getúlio, porém, Lula
diz que não tem chance de se matar depois de ganhar", diz, entre risos,
um de seus correligionários.
Em agosto de 1950,
cinco anos depois do fim do período conhecido como Estado Novo, Getúlio
enfrentava resistência da maior parte da imprensa e dos grandes
empresários do país. Ele entrou na Presidência em 1930. Sete anos
depois, instaurou o Estado Novo - ditadura que cassou partidos
políticos, fechou o Congresso, perseguiu e torturou opositores.
Por
outro lado, o ex-ditador era bastante popular, pois implantou medidas
que melhoraram a vida dos trabalhadores, como a Consolidação das Leis do
Trabalho (CLT), em 1943.
"Getúlio era um ditador
popular, principalmente por políticas que valorizavam as condições dos
trabalhadores, e pela instalação de um Estado nacional, com uma
indústria brasileira", explica o historiador Sérgio Lamarão,
ex-pesquisador do Centro de Pesquisa e Documentação de História
Contemporânea do Brasil da Fundação Getúlio Vargas (FGV).
Nos
primeiros meses de 1950, não se tinha certeza se Getúlio sairia
candidato a presidente. Apesar de ser senador, ele passava a maior parte
do tempo em São Borja (RS), sua cidade natal. Ele foi convencido a
concorrer por membros do PTB, partido trabalhista do qual ele era
presidente de honra. De modo parecido, há quatro meses Lula tampouco
sabia se seria candidato. Foi alvo de intensa pressão de colegas do PT
para que se convencesse a se lançar.
Segundo
Lamarão, a grande imprensa era "antigetulista" e apoiava Eduardo Gomes,
candidato da UDN (União Democrática Nacional). "A UDN era uma espécie de
PSDB daquela época, um partido das classes médias urbanas", explica o
historiador.
Sem apoio da mídia e do empresariado,
Getúlio citou sua relação com a classe trabalhadora em discurso em São
Luís no dia 22 de agosto de 1950: "Encontrei, é certo, o apoio do
proletariado, não porque pretendesse fomentar a luta de classes, mas
porque minhas ideias se filiavam ao movimento universal de humanização
do trabalho e de consagração da igualdade de direitos e de oportunidade
para todos na luta pela vida".
Semelhanças e diferenças
Lamarão
vê semelhanças entre o período da segunda eleição de Getúlio e a
situação atual de Lula. "Eles são lideranças populares, com apelo
inegável, ambos com oposição da grande mídia, ambos polêmicos, ambos com
telhado de vidro. Os dois cometeram pecados políticos, com
indefinições, erros. Os dois fizeram muita coisa para garantir a tal
governabilidade", diz.
Já o sociólogo Luiz Werneck
Viana vê diferenças entre as duas figuras. "Lula tenta mimetizar
Getúlio, porque essa é uma narrativa que tem eficácia, mas ela não se
comprova pelos fatos. Getúlio queria organizar a sociedade por cima,
pelo corporativismo, pela criação de um estado nacional forte,
industrializado", explica. "Lula é justamente o contrário, quer
organizar por baixo. Ele encarnou a questão social, dos excluídos, o que
não era um discurso de Getúlio".
Embora o
corporativismo e o discurso inclusivo sejam diferentes, Vargas e Lula
tomaram decisões parecidas para viabilizar suas gestões e garantir
governbilidade. Para Thiago Mourelle, doutor em história social pela
Universidade Federal Fluminense e supervisor de pesquisa do Arquivo
Nacional, os dois estão próximos pois buscavam governos de coalizão, com
os mais diversos apoiadores. "Vargas chegou a oferecer ministérios para
a UDN, adversária histórica, e compôs diversas vezes com adversários em
nome da governabilidade", diz.
José Álvaro
Moisés, professor de ciências políticas da USP, vê outra semelhança
entre os líderes. Essa, no entanto, é negativa para o petista. "O
ex-presidente Lula, quando faz essa comparação, está admitindo
inconscientemente que, como Getúlio, ele é um autoritário. Getúlio foi
um ditador. A questão autoritária de Lula é a corrupção. Corrupção tem
uma faceta autoritária, pois ela retira recurso da comunidade
indevidamente, de forma obscura. Lula usou da corrupção para que o
partido se mantivesse no poder", diz.
"No nome de
Vargas não havia manchas, estava viva a ideia de 'pai dos pobres' e
criador da CLT e a maior acusação que ele sofria era a pecha de
ditador", explica Mourelle. "Lula, estrategicamente, sempre posiciona
seu nome na mesma prateleira da que está Vargas, afinal, Vargas foi
muito popular, talvez tenha sido o presidente mais marcante do Brasil, e
ficou marcado pelas leis trabalhistas. Portanto, é um espelho
desejado".
Mourelle cita similaridades na
trajetória política do petista e do populista: "Ambos são figuras
políticas que ficam acima dos partidos, são trabalhistas identificados
com o reformismo e com a cooperação entre as classes. Ambos são
criticados tanto pela esquerda radical - por causa de seus projetos
reformistas - quanto pela direita radical - que os acusa de
'comunistas'".
As caravanas
Para
vencer as eleições, Getúlio percorreu todos os 20 Estados que existiam
no Brasil na época. Ele pronunciou 80 discursos durante a caravana,
segundo pesquisa da Fundação Getúlio Vargas.
"A
estratégia de Vargas foi abordar em cada cidade o tema que falava mais
de perto à plateia local. Assim, se na Amazônia os pontos enfatizados
foram nacionalismo e borracha, no Paraná, dedicou-se sobretudo ao café e
no Mato Grosso, à pecuária. O nacionalismo foi novamente a
palavra-chave na Bahia, ao lado de petróleo, cacau e aproveitamento do
rio São Francisco", diz o texto.
Já Lula
concentrou seu roteiro em Estados do Nordeste: a caravana começou no dia
17 e termina nesta terça-feira, no Maranhão. Ele visitou Pernambuco,
onde nasceu, e foi recebido pelo senador Renan Calheiros (PMDB) em
Alagoas.
Em seus discursos, o petista criticou a
operação Lava-Jato e o governo do presidente Michel Temer (PMDB). E deu
ênfase aos feitos de sua gestão: como o programa redistributivo Bolsa
Família e as medidas de impulsionamento da economia nordestina.
"Quando
criei o Bolsa Família, sabia que não era pra resolver todos problemas,
mas sabia que era suficiente para uma mãe levar pão pra casa. Os mais
pobres precisavam de trabalho, crédito, respeito. E começaram a comprar
peito de frango no lugar do pescoço, a andar de avião", disse Lula.
Eventos
como esse fazem parte da história de Lula. Nos anos 1990, ele visitou
mais de 300 cidades do país nas chamadas "Caravanas da Cidadania". Para
Cláudio Gonçalves Couto, professor de ciência política da FGV, é
"difícil dizer" se a caravana de Lula fará tanto efeito quanto as
anteriores.
"Ela não tem o mesmo impacto direto
das caravanas anteriores. O impacto direto é o corpo a corpo, as pessoas
que ele atinge pessoalmente", diz. "Outro impacto é indireto, ou seja, a
capacidade que esses eventos têm de repercutir, de virar notícia, de
chegar às redes sociais. Isso me parece que Lula está conseguindo
atingir, ele tem mostrado certa força na região, principalmente nesse
momento de desgaste do governo atual (de Michel Temer)", diz Couto.
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