Os artigos 5º e 186 da Constituição
Federal de 1988 afirmam que ‘a propriedade atenderá sua função social’. O
ministro do Desenvolvimento Agrário, Patrus Ananias, também fala sempre da
função social da terra em seus discursos e a importância do bem para garantir a
soberania alimentar e nutricional brasileira. Mas o que é isso? Como uma
propriedade cumpre sua função na sociedade? O advogado da União e Consultor
Jurídico do MDA, João Paulo Santos responde.
O que é função social da terra?
É uma história longa, feita no Brasil e
no exterior por muito tempo. A ideia de uma função social da propriedade surge
como uma reação ao Código Civil de Napoleão, em 1804, que foi o primeiro código
civil depois da Revolução Francesa, que colocou o direito de propriedade como
centro do direito, como direito absoluto. Mas colocar a propriedade como
absoluta acabou gerando uma imensa desigualdade.
Começa-se a perceber que a propriedade
deva existir, mas que ela tenha um porquê de existir. Ela não é um fim em si
mesma. Ela tem uma finalidade, ela serve a sociedade. E não é apenas na geração
de riquezas, mas também no significado cultural e religioso para povos
tradicionais, além de ser também uma fonte de trabalho justo.
Como uma propriedade cumpre sua função
social?
A Constituição de 1988, no artigo 186,
fala que o imóvel cumprirá a função social da propriedade quando atender a
quatro aspectos simultaneamente. 1– aproveitamento racional e adequado, que é
relacionado com as riquezas. 2 – o aspecto ambiental, que é a função ambiental
da propriedade. 3 – proporcionar relações justas e adequadas de trabalho. 4 –
Bem-estar, que é evitar os conflitos.
Ou seja, a propriedade da terra não
serve só para aspecto econômico, mas também garante a proteção ambiental,
precisa gerar trabalhos dignos e gerar paz no campo.
A agricultura familiar é um exemplo do
cumprimento dessa função social?
Com certeza! Se você olhar para os
quatro aspectos, a agricultura familiar cumpre todos. É um espaço que gera
alimentos, empregos com relação justa de trabalho e proporciona paz no campo. A
terra está produzindo alimentos saudáveis que a sociedade precisa, e essa é a
ideia. O fundamental é que a terra gere algo que a sociedade precise.
Quais os entraves para garantir esse
cumprimento em todo o Brasil?
A partir do momento em que o
proprietário descumpre a função social, o correto seria que o ente federativo
competente, a União, por meio do Incra, faça a vistoria da área e comece um
processo de desapropriação. O problema é que a possibilidade do Incra
desapropriar até 1993 era quase zero, pois não havia legislação sobre isso.
Depois disso, gerou-se uma série de
empecilhos. Foram vários debates com o Judiciário, milhões de famílias
sem-terra surgiram e a reforma agrária não andava. A solução final seria a
criação de uma justiça agrária, mas enquanto não chegamos lá, a solução é usar
a Constituição e levar ao Supremo Tribunal Federal para que possamos rediscutir
a terra que queremos.
Será que queremos uma terra em que o
sujeito planta soja em larga escala, gerando poucos empregos e colocando
agrotóxicos da maneira que ele quer? Nenhum país desenvolvido no mundo tem essa
concepção.
Temos um problema gravíssimo, que é a
afirmação de que o agronegócio mantém a balança comercial brasileira. Nós temos
200 milhões de habitantes no Brasil, nenhum país com esse número de habitantes
sobrevive sem importar comida. E nosso índice de importação de alimentos é de
5%. 95% do que comemos é produzido aqui, sendo 70% da agricultura familiar. Se
fossemos um país sem a agricultura familiar forte e tivéssemos que importar
comida, nosso balanço seria negativo.
E como fazer para garantir uma melhor
distribuição de terras?
A desapropriação pode parecer que
trabalha contra a propriedade, mas ela trabalha a favor. Antes, no estado
absolutista, não se desapropriava. Tudo era confiscado. A desapropriação parte
de uma garantia absoluta da propriedade. E sempre haverá desapropriação, seja
para fazer estradas, palácios, sítios arqueológicos...
Hoje há dois tipos de desapropriação –
para reforma agrária e urbana. A desapropriação para reforma agrária é uma
sanção para o proprietário que não cumpriu a função social da propriedade.
Então, o tratamento deve ser diferente, pois é uma sanção: não é pago em
dinheiro, mas sim em títulos da dívida agrária e o pagamento é de preço justo.
Nenhum lugar da Constituição Federal aponta preço de mercado, mas sim preço
justo.
Aqui começa o primeiro problema: se é
uma sanção, como o preço justo é o preço de mercado? Precisamos ter um ponto de
equilíbrio entre interesses pessoais e coletivos. Hoje, geramos na reforma
agrária, por causa do Judiciário, preços exorbitantes. Porque, além do preço de
mercado, é pago juros moratórios, atualização monetária e juros compensatórios,
de 12% ao ano.
Além de ter um custo para o erário, tem
um custo no sentimento do País. Assim, eu traduzo um pensamento
interessantíssimo: a reforma agrária é cara demais. Hoje, é mais barato
desapropriar pela forma antiga do que pela ‘sanção’ ao mau proprietário.
João Paulo Biage
Ascom/MDA
Ascom/MDA
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