sábado, 12 de setembro de 2015

“A reforma agrária é cara”

Os artigos 5º e 186 da Constituição Federal de 1988 afirmam que ‘a propriedade atenderá sua função social’. O ministro do Desenvolvimento Agrário, Patrus Ananias, também fala sempre da função social da terra em seus discursos e a importância do bem para garantir a soberania alimentar e nutricional brasileira. Mas o que é isso? Como uma propriedade cumpre sua função na sociedade? O advogado da União e Consultor Jurídico do MDA, João Paulo Santos responde.

O que é função social da terra?
É uma história longa, feita no Brasil e no exterior por muito tempo. A ideia de uma função social da propriedade surge como uma reação ao Código Civil de Napoleão, em 1804, que foi o primeiro código civil depois da Revolução Francesa, que colocou o direito de propriedade como centro do direito, como direito absoluto. Mas colocar a propriedade como absoluta acabou gerando uma imensa desigualdade. 
Começa-se a perceber que a propriedade deva existir, mas que ela tenha um porquê de existir. Ela não é um fim em si mesma. Ela tem uma finalidade, ela serve a sociedade. E não é apenas na geração de riquezas, mas também no significado cultural e religioso para povos tradicionais, além de ser também uma fonte de trabalho justo.

Como uma propriedade cumpre sua função social?
A Constituição de 1988, no artigo 186, fala que o imóvel cumprirá a função social da propriedade quando atender a quatro aspectos simultaneamente. 1– aproveitamento racional e adequado, que é relacionado com as riquezas. 2 – o aspecto ambiental, que é a função ambiental da propriedade. 3 – proporcionar relações justas e adequadas de trabalho. 4 – Bem-estar, que é evitar os conflitos.
Ou seja, a propriedade da terra não serve só para aspecto econômico, mas também garante a proteção ambiental, precisa gerar trabalhos dignos e gerar paz no campo.
A agricultura familiar é um exemplo do cumprimento dessa função social?
Com certeza! Se você olhar para os quatro aspectos, a agricultura familiar cumpre todos. É um espaço que gera alimentos, empregos com relação justa de trabalho e proporciona paz no campo. A terra está produzindo alimentos saudáveis que a sociedade precisa, e essa é a ideia. O fundamental é que a terra gere algo que a sociedade precise.
Quais os entraves para garantir esse cumprimento em todo o Brasil?
A partir do momento em que o proprietário descumpre a função social, o correto seria que o ente federativo competente, a União, por meio do Incra, faça a vistoria da área e comece um processo de desapropriação. O problema é que a possibilidade do Incra desapropriar até 1993 era quase zero, pois não havia legislação sobre isso.
Depois disso, gerou-se uma série de empecilhos. Foram vários debates com o Judiciário, milhões de famílias sem-terra surgiram e a reforma agrária não andava. A solução final seria a criação de uma justiça agrária, mas enquanto não chegamos lá, a solução é usar a Constituição e levar ao Supremo Tribunal Federal para que possamos rediscutir a terra que queremos. 
Será que queremos uma terra em que o sujeito planta soja em larga escala, gerando poucos empregos e colocando agrotóxicos da maneira que ele quer? Nenhum país desenvolvido no mundo tem essa concepção.
Temos um problema gravíssimo, que é a afirmação de que o agronegócio mantém a balança comercial brasileira. Nós temos 200 milhões de habitantes no Brasil, nenhum país com esse número de habitantes sobrevive sem importar comida. E nosso índice de importação de alimentos é de 5%. 95% do que comemos é produzido aqui, sendo 70% da agricultura familiar. Se fossemos um país sem a agricultura familiar forte e tivéssemos que importar comida, nosso balanço seria negativo.
E como fazer para garantir uma melhor distribuição de terras?
A desapropriação pode parecer que trabalha contra a propriedade, mas ela trabalha a favor. Antes, no estado absolutista, não se desapropriava. Tudo era confiscado. A desapropriação parte de uma garantia absoluta da propriedade. E sempre haverá desapropriação, seja para fazer estradas, palácios, sítios arqueológicos...
Hoje há dois tipos de desapropriação – para reforma agrária e urbana. A desapropriação para reforma agrária é uma sanção para o proprietário que não cumpriu a função social da propriedade. Então, o tratamento deve ser diferente, pois é uma sanção: não é pago em dinheiro, mas sim em títulos da dívida agrária e o pagamento é de preço justo. Nenhum lugar da Constituição Federal aponta preço de mercado, mas sim preço justo.
Aqui começa o primeiro problema: se é uma sanção, como o preço justo é o preço de mercado? Precisamos ter um ponto de equilíbrio entre interesses pessoais e coletivos. Hoje, geramos na reforma agrária, por causa do Judiciário, preços exorbitantes. Porque, além do preço de mercado, é pago juros moratórios, atualização monetária e juros compensatórios, de 12% ao ano.
Além de ter um custo para o erário, tem um custo no sentimento do País. Assim, eu traduzo um pensamento interessantíssimo: a reforma agrária é cara demais. Hoje, é mais barato desapropriar pela forma antiga do que pela ‘sanção’ ao mau proprietário.

João Paulo Biage
Ascom/MDA

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