Se dependesse de sua vontade, Paulo Vinícius Xavier dos Santos, de 15
anos, estaria cursando o Ensino Médio durante o dia. Mas, como repetiu
de ano e faltam vagas diurnas na Escola Estadual Fernão Dias, na zona
oeste de São Paulo, recebeu como “punição” pelo mau desempenho a
transferência para o período noturno. “Meu pai ficou preocupado, acha
que é perigoso, porque moro longe e chego em casa muito tarde. Mas acho
que vai ser melhor assim: vou aproveitar para procurar emprego, ter meu
dinheiro”, afirmou o jovem em seus primeiros dias de estudo à noite.
Quase 30% dos estudantes do Ensino Médio no Brasil estavam matriculados no período noturno em 2013, segundo o Censo Escolar do MEC. Existe uma leve tendência de queda nesse número – em 2010, o período noturno tinha 34,7% das matrículas; em 2013, eram 28,8% – mas ainda é uma porcentagem bastante significativa e problemática, de acordo com especialistas em políticas públicas para a educação.
Quase 30% dos estudantes do Ensino Médio no Brasil estavam matriculados no período noturno em 2013, segundo o Censo Escolar do MEC. Existe uma leve tendência de queda nesse número – em 2010, o período noturno tinha 34,7% das matrículas; em 2013, eram 28,8% – mas ainda é uma porcentagem bastante significativa e problemática, de acordo com especialistas em políticas públicas para a educação.
No projeto de lei para a reforma do Ensino Médio que tramita na Câmara dos Deputados, o PL 6.840/2013, há um artigo que prevê a extinção do período noturno. Segundo o texto, somente alunos com mais de 18 anos serão admitidos para estudar à noite. Embora todos concordem que a aprendizagem dos estudantes do noturno seja de qualidade inferior, o fim do turno causa polêmica, pois teme-se que a medida possa levar à exclusão de uma parcela ainda maior de jovens.
A necessidade de trabalhar explica apenas parcialmente o tamanho do contingente de estudantes do noturno. Assim como Paulo Vinícius, muitos acabam nesse turno por falta de vagas. Segundo as declarações dos alunos no Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb), apenas metade dos que estão matriculados no noturno (51%) trabalhava formal ou informalmente – entre os que estudam durante o dia, 20% declararam que estavam trabalhando em 2013.
“É uma falácia alegar que os alunos frequentam o noturno porque trabalham. O ensino noturno é uma excrecência. Ele ganhou força nos anos 1980 porque não havia estrutura física nas escolas para tantos alunos. Seria uma solução provisória, que virou permanente”, critica Marcos Antonio Magalhães, presidente do Instituto de Co-responsabilidade pela Educação (ICE). Para ele, nem mesmo o trabalho justifica uma transferência para o período noturno. “O Ensino Médio deveria ser diurno, como acontece em todo o mundo. Os jovens de 15, 16 e 17 anos têm de estar na escola, não trabalhando”, disse.
Magalhães reconhece que há muito que se mudar no Ensino Médio para além da extinção do turno da noite. “É preciso aumentar a carga horária, ter menos disciplinas, oferecer uma diversificação. Não pode ser um só modelo para todos”, afirmou. Para ele, a questão da carga horária é um dos obstáculos que impedem qualquer chance de sucesso do ensino noturno. “À noite há menos tempo de aula; muitas vezes os alunos participam de apenas duas horas-aula”.
Desigualdades
Resultados de provas padronizadas confirmam o fraco desempenho dos alunos do noturno em comparação aos colegas do diurno. Segundo uma compilação de dados feita pelo movimento Todos Pela Educação a pedido da Carta na Escola, a média de proficiência no Saeb dos alunos do noturno é menor, assim também como o porcentual de alunos com o aprendizado adequado. As metas do movimento Todos Pela Educação consideram o aprendizado adequado quando o aluno do 3º ano do Médio atinge pelo menos 300 pontos em Português e 350 em Matemática. Em Matemática, apenas 13,1% dos alunos do diurno acertaram a meta, ante 1,8% dos estudantes do noturno. Em Português, o número foi de 34,6% e 12,8%, respectivamente.
Uma soma de diversos fatores provoca essa discrepância, sem que seja possível indicar objetivamente qual é o maior responsável. “Os dados levantam um alerta: o período noturno leva a um desempenho pior. Mas precisamos olhar com cuidado o que está gerando isso”, disse Alejandra Velasco, coordenadora-geral do Todos pela Educação.
Para além da ocupação, quem estuda à noite tem um perfil diferente do aluno do matutino. Mais da metade está com idade acima da considerada adequada para a série – são 53,3% contra 19,9% de distorção nos períodos diurnos. Eles também têm pais com escolaridade mais baixa: 49,2% têm pais que concluíram apenas o Fundamental; no diurno, o índice é de 32,9%. Idade e escolaridade dos pais costumam influenciar o desempenho do aluno na escola.
Mesmo quando só se avaliam os estudantes com idade adequada à série, porém, os matriculados no noturno se saem pior. Dos alunos que estavam na terceira série do Ensino Médio com 17 anos, 17,5% atingiram 350 pontos na prova de Matemática quando estudavam durante o dia. Entre os do noturno com a mesma idade, o índice foi de 3,4%. Em Português, conseguiram 300 pontos, 42,5% dos do diurno e 21,3% dos do noturno.
Assim como o trabalho não justifica a alta porcentagem de estudantes no noturno, ele tampouco pode ser responsabilizado pelo pior desempenho desses jovens. Nos turnos do dia, o trabalho tem grande impacto sobre o desempenho do aluno no Saeb. A proficiência adequada em Matemática cai de 15,2% para 8,9%, se comparados os grupos dos que apenas estudam com os que estudam e trabalham; e de 38,1% para 28,5% em Português. No noturno, porém, essa diferença é inexistente. Em Matemática, 2% alcançaram a proficiência em ambos os grupos e, em Português, os trabalhadores se saíram ligeiramente melhor: 13,9% chegaram aos 300 pontos, contra 13,6% dos que não trabalham.
“De forma geral, o trabalho atrapalha o desempenho na escola, porque aquele aluno tem uma condição de vida diferente. Mas, no noturno, esse fator não afeta a proficiência, o que nos leva a pensar na hipótese de que o curso é menos exigente. O nivelamento dá-se por baixo”, analisou Alejandra.
Funcionamento precário
Mesmo concordando que o ensino noturno hoje é pior para o jovem, Moaci Alves Carneiro, professor aposentado da Faculdade de Educação da UnB e autor do livro O “Nó” do Ensino Médio (Editora Vozes), acredita que sua extinção seria uma forma de oprimir o estudante e reduzir acesso. Ele defende que o jovem tenha o direito de escolher, sempre, em que turno estudar. “Ao impedir o jovem de estudar à noite sem políticas compensatórias, o sistema acabará excluindo-o da escola”, alerta. A raiz da falta de êxito da escola noturna, diz, não está no perfil do aluno, mas na escola noturna em si e na sua incapacidade de criar motivações que atraiam o aluno para os estudos. “O jovem aproxima-se da escola, mas a escola não entra na vida dele; ele não se identifica lá”, afirmou.
A escola noturna tenta reproduzir as práticas da diurna, e ainda assim o faz de forma precária. Um estudo de 2006, encomendado pelo MEC, Ensino Médio Noturno: Democratização e Diversidade, encontrou no período noturno índices mais altos que no diurno de rotatividade da equipe, de contratos precários e de professores sem formação para a disciplina que lecionavam. Já a presença dos diretores na escola era menor. Com frequência, a estrutura existente na escola – biblioteca, laboratórios, quadras esportivas, secretaria – ficava indisponível à noite. Outro problema encontrado pelo estudo foi a falta de projetos específicos para os alunos que estudam à noite. Carneiro advoga pela maior flexibilidade do ensino noturno e nunca pela sua extinção. “Achamos que a existência da escola noturna, para a qual acorre o trabalhador-estudante, resolve a questão da inclusão pelo simples fato de ele chegar lá. Mas há um alto índice de ausências parciais, quando o aluno chega atrasado e sai mais cedo, porque não tem um turno para a escola, e sim um tempo para a escola”, disse.
O educador também defende a oferta de incentivos financeiros para o professor do noturno, como forma de atrair os melhores e mais experientes profissionais, ao contrário do que acontece atualmente. “O professor da classe noturna deve apresentar uma conduta comportamental diferente. Todo aluno precisa identificar para que serve aquele aprendizado, mas a questão é ainda mais crucial no noturno”, explica. Segundo Carneiro, o professor “leigo” ou com contrato precário, é alguém que está apenas com uma ocupação, não um profissional inserido em uma carreira – apenas este segundo é que deveria ser responsável pelas classes noturnas.
Para Marcos Kauê Queiroz, presidente da União Municipal dos Estudantes Secundaristas (Umes) de São Paulo, além da possibilidade de exclusão de certos alunos, o temor é que esse tipo de lei tenha como efeito colateral uma piora nas condições de aula nos períodos diurnos, sobretudo com a superlotação das classes. “Uma das bandeiras da Umes é ter, no máximo, 35 alunos por sala no Ensino Médio. E hoje já existem escolas com mais de 50 por sala”, afirmou.
Além da escola
Por trás da opção de um jovem por trabalhar de dia e estudar à noite – ou apenas estudar à noite, mesmo que não trabalhe – está a ausência de políticas públicas do Estado para ele. “A juventude, sobretudo de famílias de baixa renda, é um contingente da população que fica desnorteado e desorientado. Eles não têm clareza de para quê ela vai estudar. Existe apenas a pressão da sociedade para que se entre na escola”, afirma Carneiro.
Evitar que se tenha tantos jovens estudando no período noturno deve ser uma preocupação compartilhada não apenas por educadores, mas por diversos setores da sociedade, de famílias a empresários. E qualquer avanço só acontecerá quando a discussão se ampliar para abranger opções de trabalho e renda para esses estudantes, defende Daniel Cara, coordenador-geral da Campanha Nacional pelo Direito à Educação.
“A grande miopia é desvincular o Ensino Médio da questão da demanda do jovem pela inserção no mundo do trabalho e da renda. O jovem precisa ver que não é do interesse dele, nem do País, que comece a trabalhar cedo, em subempregos”, afirmou. Segundo Cara, o ideal é que o jovem, primeiro, estude e se aperfeiçoe, para entrar no mercado ocupando posições melhores desde o início, pois o ingresso no mundo do trabalho em um subemprego aumenta as chances de manutenção no mesmo. “Não é isso que o Brasil deseja para os seus jovens, não é disso que o Brasil precisa.”
Portanto, dentro da escola, o grande segredo seria o Ensino Médio ter a capacidade de dar subsídios para os projetos de vida dos adolescentes e jovens, sem que eles sentissem vontade de trabalhar tão cedo. “Deveríamos garantir a atratividade no matutino e no vespertino, para que o estudante não se interesse pelo noturno. Existe uma tendência perversa, que pode crescer, de os jovens atrasarem seus estudos para cursar o noturno”, disse.
Do lado de fora, a medida deveria vir acompanhada de políticas de esporte, cultura, lazer e renda para essa parcela da população. Para viabilizar a extinção do noturno, sugere Cara, seria interessante oferecer opções de renda, como programas de bolsas, para os jovens de famílias em situação muito vulnerável.
Sim, e também é preciso ter vagas para todos que preferirem estudar de dia, algo que ainda hoje não acontece, mesmo em bairros centrais da capital paulista. “Uma medida para acabar com o noturno necessita de um processo de transição. Existe uma demanda muito heterogênea; vai ser preciso construir escolas em vários lugares, como nas periferias das grandes cidades, nas áreas rurais e até nas comunidades quilombolas”, pondera Cara.
Mais do que uma lei, o Brasil precisa de um conjunto de ações para
levar os jovens a entrar no mundo do trabalho em boas condições, depois
de um tempo realmente dedicado aos estudos. Mas, hoje, Paulo Vinícius
tem de entrar pela porta dos fundos para assistir às aulas no período
noturno.
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